Angela Leite - 1998

Impressões marinhas

Impressões marinhas


Num desabafo melancólico, Drummond protestou contra a caça das baleias, acusando-a de ser feita de sangue e de um lado escuro da mente dos homens.

Não vou torturá-los despejando em nosso recinto as inumeráveis perversões que ano após ano se repetiram (e ainda se repetem em lugares esparsos), manchando os mares e a dignidade da espécie humana de forma indelével.

É suficiente lembrar os números – tão neutros e frios sempre – que figuram nesta cena de forma dramática. Cada temporada anual permitiu o abate de 30 mil baleias azuis de uma população original estimada de apenas 210 mil indivíduos, reduzindo-a a cercam de cinco a dez mil ao fim de 32 anos de proteção. Em 100 anos, 350 mil foram eliminadas.

Esgotada comercialmente a espécie mais rendosa, a industria baleeira voltou os canhões de sua frota para outra espécie que lhe sucedia em valor. Assim, foram dizimadas as francas e bowheads, as cinzentas, as jubartes, as azuis, as fins, as seis confundidas com as de bryde e quando as (outrora desprezíveis) minkes mantinham os navios-fábrica ocupados, a campanha mundial interrompeu essa seqüência vertiginosa e exigiu a moratória da caça.

Esperamos que esta vitória tenha consolado o poeta no último ano de sua vida.

Também nós, reunidos nesta cidade que prestigia suas águas no próprio nome, podemos comemorar que esta semana Será dedicada à vida e não à morte das baleias.

Podemos aplaudir a passagem de mais de 1.500 jubartes que escolheram as tépidas águas de Abrolhos para sua procriação, revelando um gradativo aumento populacional em nosso parque marinho, livre dos arpões desde 1966.

Podemos desprezar os incalculáveis itens absurdos que justificaram um massacre legitimado: espartilhos, ração para cães e gatos, batons, fixadores de perfume, margarina, carne para países abastados e etcéteras que preenchem a escala das futilidades.

E podemos nos concentrar nos prodígios com os quais nos contemplam os maiores seres que nosso planeta jamais abrigou.

Integrantes do grupo de “retorno ao mar”, baleias descendem de animais terrestres do período Eoceno. Ha 50 milhões de anos surgiram as primeiras famílias da ordem dos cetáceos: os arqueocetos, baleias arcaicas e extintas, que ainda deveriam retornar a terra, como as focas, para dar à luz.

As duas subordens atuais remontam ao período oligoceno (30 a 20 milhões de anos) e somam 77 espécies.

Odontocetos são baleias com dentes com um único orifício nasal, representados por oito famílias, nos dias de hoje, e 67 espécies.

Monodontídeos (belugas e narvais) e platanistídeos (três golfinhos fluviais da Ásia) não ocorrem no Brasil.

Freqüentam nossas águas:

Phisiteridae (três espécies de cachalote)
Ziphiidae (dez espécies de baleias-de-bico)
Delphinidae (17 espécies de golfinhos, como o popular Fliper)
Phocoenidade (duas pequenas espécies de botos)
Pontoporiidae (franciscana, única espécie da família) e a família Iniidae, com o famoso boto-cor-de-rosa amazônico.

A subordem dos Misticetos divide-se em quatro famílias que possuem barbatanas e dois orifícios respiratórios.

A família Eschrichtiidae só ocorre no Hemisfério Norte e se restringe à baleia cinzenta da Califórnia; Balaenidae conta com três espécies, das quais a baleia-franca-do-sul percorre nosso litoral do Rio Grande do Sul até Abrolhos; e a família Balaenopteridae esta representada por seis rorquais (providos de pregas ventrais): baleia azul, fin, sei, de-bryde, minke e a acrobática jubarte.

A desconhecida baleia-franca-pigméia (Neobalenidadae) ocorre no Atlântico Sul e possivelmente no Brasil.

Filhotes engordam até 90 kg por dia, com o leite muito rico em calorias, por um período mínimo de sete meses. É espantoso imaginá-lo crescendo a olhos vistos neste ritmo. A acentuada proteção materna sugere uma compensação à baixa taxa de natalidade das espécies.

Registros de cooperação entre baleias e homens são conhecidos desde a Antigüidade. Golfinhos que salvam náufragos, a exemplo do que fazem com companheiros feridos; golfinhos que cooperam com pescadores e, mais recentemente, golfinhos que beneficiam crianças portadoras de deficiências.

É surpreendente ouvir os cantos gravados das baleias e avaliar a gama de emoções que eles transmitem.

É instigante acompanhar pesquisas sobre sua linguagem e se deixar embalar pela possibilidade de comunicação entre uma espécie que tanto construiu e destruiu e outra que sempre cruzou os oceanos e usou todos os recursos corporais para manter contacto com seus congêneres.

É fascinante observá-las dando ao ritmo das ondas com uma leveza e uma graça de tantas toneladas que levaram o célebre baleeiro Scammon a contemplar as jubartes como andorinhas em vôo.

É comovente lembrar que seus laços familiares são tão estreitos que técnicas foram desenvolvidas para arpoar primeiro o baleote ou a fêmea, porque a mãe ou o companheiro fatalmente não abandonariam o ferido.

É impressionante imaginar que seres providos de cérebros colossais e complexos empreguem tanta sofisticação na travessia dos mares, nas intensas relações sociais e em que outras coisas mais, insuspeitáveis para nós?

Soberanas do reino marinho, poucos distúrbios, alem dos que nos lhes causamos, ameaçam sua sobrevivência. Orcas e tubarões eventuais, uma lula gigante mais resistente, uma disputa pela companheira mais charmosa... Entre elas, viver não é lutar. Baleias não conhecem a guerra, além da que movemos contra elas. E, na precária trégua que lhes concedemos, envenenamos suas águas, causando-lhes doenças novas, que começam a dizimá-las.

Justamente hoje, que reflito sobre a paz que delas emana, sou informada de que os EUA liberaram a caça de algumas baleias cinzentas, proibida desde 1937, para os índios makah da costa Noroeste, abrindo uma ameaçadora brecha na conquistas de seus defensores.

Para uma platéia do interior paulista que assistiu ao ciclo do café e da cana, certamente as agressões ao mundo marinho não são as mais familiares.

Num ano marcado por um índice excepcional de incêndios florestais, que devastou parques preciosos, é urgente denunciar o decreto do Ibama que autorizou queimadas em propriedades de 500 ha, legalizando uma prática criminosa que contribuiu para alastrar o fogo nas reservas.

Trouxe para vocês a lista dos animais ameaçados de São Paulo, publicada em 05/02/1998. Dezoito espécies são consideradas extintas no estado e outras 67 encontram-se criticamente em perigo.

O exemplo da campanha de salvação das baleias é um alento para quem desanima diante das gigantescas pressões econômicas. Baleias que encostaram no limiar da extinção começam a se recuperar após seis décadas de proteção, tal como as francas, já vistas três vezes no litoral Sul da Bahia.

A tarefa é estafante, mas o vigor do milenar jequitibá da minúscula reserva de Vassununga, a poucos quilômetros daqui, nos ordena a marchar contra tudo que nos ensinaram que é progresso.

Ontem votamos com o mais consciente espírito de cidadãos. Precisamos delegar nossa confiança aos melhores representantes desta luta. O país da biodiversidade merece uma dose colossal de indignação.

Cento e cinqüenta toneladas, ressacas como brincadeira, 90 kg de engorda por dia, três mil milhas de viagem...; 1.500 anos de vida, nove homens para abraçá-la, 40 m de altura... Baleias, jequitibás – suas medidas nos paralisam e nos conduzem para um mundo de dimensões muito mais generosas que o humano. E um sopro de eternidade nos percorre, trazendo um pouco de paz à nossa vida miúda e um tanto de respeito ao esplendor que eles refletem.